terça-feira, 28 de junho de 2011

Airton Monte - É noite, eu sei - 6 Junho 2011


Quanto lirismo nesta crônica - Isso é peculiar a poucos!!

Airton Monte - É noite, eu sei - 6 Junho 2011

A noite é a mãe de todos os meus sonhos e a madrasta de todos os meus medos. À noite me tomam a mente os melhores e os piores pensamentos. As ideias mais alegres e as mais tristes. Durante o dia sou um homem, de noite eu sou um outro tão diferente que mal chego a reconhecer a minha dessemelhante figura nos espelhos. Por isso gosto de escrever à noite, porque, para mim, quando anoitece, nem todos os gatos são pardos, mas as coisas a meu redor se vestem de outra dimensão, embora me seja difícil enxergá-las com plenitude e clareza através das retinas dos meus olhos míopes, apesar das grossas lentes dos óculos. Desde menino, carrego comigo essa ambiguidade de ser um à luz do sol e outro à luz da lua e das estrelas. Duas humanas criaturas convivendo, por vezes, não muito amigavelmente, dentro deste vivente que sou eu e minhas diurnas e noturnas circunstâncias. O que não me torna nem melhor nem pior que meus semelhantes. Apenas diferente.

Costumo dizer, em tom do que pretendo uma poética blague, que eu não sou um, sou tantos quantos meu coração suporta. Mentira. Em verdade, sou somente dois: o animal diurno e o animal noturno. De dia, sou um sujeito essencialmente pragmático, mergulhado até os gorgomilhos na dura azáfama do cotidiano, muitíssimo ocupado com o lado prático da vida, afogado nos tediosos, porém necessários, compromissos, deveres e obrigações do dia a dia. Trabalho, contas a pagar, por o de comer na mesa da família, ir ao médico, preocupações caseiras, cumprir horários, sei lá que mais a me atubibar o juízo. De dia é quando compreendo, em seu completo significado, a sartreana frase de que o inferno são os outros. Ou que meu inferno sou eu mesmo, sem tirar nem por. O dia é a face escura da lua, porém as crateras residem em minha alma. O cansaço, a irritação, a pouca tolerância invadem o território do meu corpo como indesejáveis posseiros.

Ao cair da noite, entranha-se em mim, sem precisar pedir licença, o inesperado e sempre bem-vindo sonhador. Torno-me um lúdico, um lírico, um romântico incurável e nada do que seja sentimento, emoção me são estranhos. A noite me faz íntimo de tudo que me cerca, principalmente das palavras escritas ou pensadas. À noite, sou todo imaginação. Meu boêmio e noctívago barco levanta âncora, iça as velas, se lança aos mares oníricos mesmo sem que eu saia do lugar. Não é que eu passe a viver no melhor dos mundos. Claro que o mundo permanece o mesmo, somente troca de aparência como quem veste uma roupa nova. Sou eu quem mudo, me transformo, me transmuto cá por dentro. Afasto de mim as aflições, chuto para longe as angústias feito quem dá um pontapé num cão vadio que lhe atravessou o caminho. De uma maneira inexplicável, à noite consigo ser o que sempre almejei ser, nem mais nem menos. Sou um adorador da noite e me prostro, devotamente, perante seus altares.

E à medida que a noite vai passando, vai envelhecendo, o meu imaginário, seguindo um rumo inverso, rejuvenesce, refloresce loução e me ajuda a construir o presente, quem sabe, também o amanhã. Então, escrevo. Deixo-me levar pelo correr da pena no papel e escrevo dramas, paixões, comédias e o que mais me vier ao bestunto. Ser boêmio é amar a noite e seus segredos. E eu gosto mais da noite do que do dia não me canso de repetir. Caso pudesse, viveria de noite e dormiria de dia. À noite, quase volto a ser adolescente, de riso fácil e alma imaculada. Liberto-me da louca de procurar ser feliz. Não se pode ser feliz sempre, sussurra-me a noite, confidente. E que a vida é breve. De noite, sou um homem bom. Antes de vencer a contumaz insônia, não resta em mim um tico de vergonha, de pejo. Posso até não dormir o sono dos justos, mas caio nos braços de Morfeu certo que mal nenhum fiz a meus irmãos, pelo menos de caso pensado. Encosto a cabeça no travesseiro pacificado, sem remorsos, sem culpas. Foi a noite, eu sei.


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