terça-feira, 21 de junho de 2011

Airton Monte - Gatos e passarinhos - 14 Abril 2011

Bem erudito!


Airton Monte - Gatos e passarinhos - 14 Abril 2011





Ao entardecer, um gato preto caminha lentamente sobre o muro do meu quintal. Move-se sem nenhuma pressa como se fosse o dono do pedaço. Embora eu tenha uma ancestral ojeriza aos felinos, devo reconhecer tratar-se de um belo animal, que ostenta um porte majestoso, o pelo brilhante, lustroso feito um móvel que acabou de ser envernizado. Move-se com elegante sinuosidade, infenso às afiadas pontas dos pregos cravados na alvenaria. Quando percebe a minha presença, estanca o passo, deixa-se demoradamente quieto, olhando fixamente em minha direção. Certamente espera que os seus instintos bem treinados pela experiência das ruas lhes digam se represento ou não algum perigo para sua sobrevivência. Depois de uma breve pausa, prossegue em sua jornada vespertina até sumir por entre as grades do segundo andar da casa vizinha e dele não tenho mais sinais até o entardecer do outro dia.


Claro que o dito bichano nem se compara em termos de beleza e porte ao velho e grande gato gordo que passava os dias e as noites a caçar pombos invisíveis pelos beirais dos telhados da rua em que morei faz pouco tempo e que por lá ficou guardando as minhas lembranças por dezesseis anos acumuladas. O fato é que cotidianamente ao anunciar-se o pôr-do-sol, o gato preto aparece sobre o muro, refazendo o mesmo percurso de sempre. Dizem que os negros gatos trazem agouros de má sorte e as mais antigas superstições costumam classificá-los como símbolos universais do azar. Apesar disso, os gatos pretos são perfeitamente iguais a outros gatos de outras cores. Estão fora da lista de mandingas que herdei de minha mãe. Para mim, um gato preto continua sendo somente um simples gato, exatamente igual a todos os seus semelhantes da espécie.

Ora bolas, se já criei vários cachorros negros, por que iria eu assustar-me, criar uma tola cisma por um gato de pelagem escura que passeia sobre o muro a cada final de tarde? O meu problema com gatos, seja lá de que cor nasçam pintados pela genética, é de outra natureza. Sou asmático e minha inseparável chiadeira pode ser subitamente desencadeada se eu mantiver com eles uma próxima convivência. Todavia, guardando a distância regulamentar, seguramente não há possibilidade de me faltar o ar olhando o passeio vespertino de um gato num muro de quintal. Além do mais, invariavelmente, meus olhos testemunham, admirados, um cenário que transporia para uma tela caso fosse eu dotado dos talentos de um pintor. O instigante contraste formado por um gato preto imóvel sobre um muro branco e os passarinhos docemente pousados nos fios estendidos entre os postes de iluminação.

O gato e os passarinhos embelezam, sem nada me cobrar em troca, a chegada da noite. Agora passaram a fazer parte do meu dia a dia e quando por cá não aparecem, sinto falta deles, amargo suas ausências como sente saudades de um velho amigo. Coisas próprias de um coração romântico a bater no peito de um poeta menor, que só tem de grande uma sensibilidade à flor da pele. O gato preto, os passarinhos alegres e eu somos personagens do mesmo filme suburbano. Compomos uma prosaica cena diariamente repetida e da qual jamais me canso de participar, mesmo desempenhando o papel ínfimo de um mero figurante. No fundo, invejo a imensa liberdade de que desfrutam. O gato pode passear sobre todos os muros. Os passarinhos podem voar para qualquer lugar que os levem suas asas. São seres livres enquanto nós os deixemos assim viver.



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