quinta-feira, 28 de julho de 2011

Airton Monte - Conformismo - 27 Julho 2011

Tá genial essa crônica!!! 

Airton Monte - Conformismo - 27 Julho 2011

"À medida que julho se finda, nos últimos estertores das férias, e agosto já se anuncia no marchar inexorável do calendário, trazendo o bendito e por demais ansiado começo das minhas próprias férias deste prestigioso matutino, torna-se, para mim, um sofrido exercício escrever estas cotidianas mal traçadas. Tal estado de espírito, essa perda do ânimo de pegar da caneta e do papel não me provoca espanto de maneira alguma. Desde que iniciei este laborioso ofício de diário cronista há cerca de uns treze anos passados, considero tal fenômeno que comigo acontece uma coisa absolutamente natural. Trata-se, evidentemente, de um cansaço comum dos meus sambados neurônios, porque, havemos de convir que a dura labuta de perpetrar uma croniqueta cinco vezes por semana durante um longo e interminável período de onze meses é, em verdade, um osso duro de roer. É ou não é, Seu Zé?

Hoje é sábado. Felizmente, para meu gáudio, a manhã nasceu lindamente ensolarada, embora de quando em quando, pairem no céu alencarino algumas raras, esparsas nuvens ameaçadoramente chuvosas, como fiapos rotos de um vestido velho, causando-me, não hei de negar, pequenos e passageiros laivos de uma ansiedade que não consigo de nenhuma forma evitar, por mais que eu tente em vão e inútil esforço de minha frágil vontade. Enquanto escrevo na varanda de casa, floridamente cercado por inúmeros jarros de plantas de todos os tipos(manias de minha mulher, que possui alma de jardineiro)meu filho se diverte com os amigos jogando um tal de RPG, mais conhecido como “Role Playing Game”, um joguinho bastante popular ente os jovens e do qual eu nada entendo, cujos princípios, regras e objetivos ainda sou inteiramente incapaz de entender. E cá entre nós, disso não faço a menor questão de aprender, juro por todos os deuses conhecidos e desconhecidos.

Nesse momento, um maldito paredão de som estoura meus combalidos tímpanos passando lentamente diante de minha casa, fazendo propaganda de produtos postos em liquidação por um estabelecimento comercial, para o qual desejo que entre numa merecida falência por um mais que justo castigo divino, por cometer o imperdoável pecado de roubar descaradamente, impunemente o sossego indispensável do próximo e do distante. Às dez da matina, a rua virou um malfadado pandemônio, uma descontrolada e infernal cacofonia. Os carros, caminhões por ela desfilam fazendo todos os barulhos que julgam ter um inalienável direito de fazê-los, correndo no rumo da Avenida Bezerra de Menezes. O espaço defronte do meu suburbano tugúrio também vai se transformando, rapidamente, em um estacionamento a céu aberto. As pessoas descem dos seus veículos falando alto como se todas elas não passassem de um bando de portadores da mais grave surdez. De instante a instante, o alarme de um semovente dispara e assim permanece por um tempo interminável, até que o desgraçado proprietário venha fazer a gentileza de desligá-lo.

Piorando a minha triste situação de impotente vítima da zoadeira generalizada, como me encontro exposto ao olhar dos passantes através das grades do muro da frente, vendedores de variadas quinquilharias costumam parar e oferecer ao homem que escreve os seus artigos que eles consideram de vital importância para minha vida. Mal sabem que ferve dentro de mim uma renitente ojeriza por todos eles, exceto o benvindo e habitual vendedor de peixe. Meu pequeno jardim está coalhado por folhetos de propaganda de todas as cores e tamanhos, que não servem nem para ser usados caso falte papel higiênico no banheiro. Ah, também costuma dar o ar de sua graça uma infindável procissão de pedintes e esmoleres, alguns falsos, que fazem da suposta mendicância profissão e outros verdadeiros, aos quais sempre ofereço um pedaço de pão ao invés de dinheiro. É, parece que minha manhã de sábado está destinada a não conhecer o significado da palavra sossego. E eu não posso fazer nada, absolutamente nada. A não ser me conformar bovinamente com meu destino."

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Airton Monte - Contrastes - 22 Julho 2011

Genial crônica do velho Monte!


"Há certas histórias aqui por mim contadas que se assemelham tanto à realidade, que muitos não acreditam ou custam a crer que se tratam de histórias verdadeiramente reais e que, em sua essência, não passam de frutos nascidos de minha vadia imaginação. E não tiro a sua razão, pois geralmente os escritores são exímios e renitentes mentirosos profissionais por força do ofício. Aliás, melhor dizendo, em verdade, os escritores não mentem no exato sentido do termo, apenas, vez por outra, costumam transfigurar a tal da realidade, botando uma pitadinha a mais ou a menos de seu personalíssimo tempero, com a finalidade de tornar o que contam um pouco mais atraente aos seus possíveis leitores. E quem conta um conto, inevitavelmente sempre aumenta um ponto. O mundo está repleto de personagens, cujas histórias merecem ser contadas, por mais inverossímeis que pareçam aos nossos olhos de contumazes incrédulos.

Pois muito bem, o nosso herói das mal traçadas de hoje tem por nome Joaquim dos Santos Reis. Uns 30 anos de idade, cor branca, usa cabelos cortados rente, de profissão bancário, de classe média aperreada, solteiro, sem pretensões casamenteiras, assíduo frequentador das boates da moda, possui um carro popular, um tanto arredio ao convívio mais íntimo com seus semelhantes, mora sozinho em um apartamento relativamente confortável e pouco mantém contato com seus familiares que moram todos no interior. O fato é que Joaquim dos Santos Reis é um sujeito solitário, viciado em computador, diante do qual passa praticamente todas as horas de folga, inteiramente integrado e participante extremamente ativo das redes de comunicação da internet, onde tem uma extensa e variegada comunidade de amigos internautas que nem ele. Ultimamente, Joaquim dos Santos Reis anda mergulhado num estado de eufórica paixão.

Hoje, saiu correndo do trabalho. Não podia chegar atrasado. Conhecia bem a namorada. Era de uma pontualidade britânica. Afinal, era inglesa e certamente viria na hora aprazada. Dava tempo de tomar um banho, vestir roupa nova, dar os últimos retoques no jantar especial. Ligou o computador, bebeu um drinque, plugou-se. Deixou-se em ansiosa espera. Nove em ponto, ela pintou no site. A tela encheu-se da frase “eu te amo”. Digitou em resposta: ”eu também”. Nunca haviam se visto, sequer ouvido a voz do outro. Regra que jamais deveria ser quebrada. Só sabia que morava nos arredores de Londres e adorava um escritor brasileiro chamado Airton Monte. Moça de muito bom gosto, por sinal. E dele, o que conhecia a internáutica amada? Que era cearense, morador de Fortaleza, fanático torcedor do Botafogo, qualidade humana que nunca seria demais ressaltar. Todos os dias, os dois se encontravam na mesma hora e trocavam infindáveis juras de amor eterno em mensagens eletrônicas que ele ia imprimindo e depois guardava cuidadosamente em inúmeras pastas de plástico como quem guarda um tesouro, trancadas a sete chaves num pequeno esconderijo oculto na escuridão do guarda-roupa.

Aos sábados e domingos, Joaquim não saía de casa nem pra comprar comida, alimentando-se de congelados, enlatados e em seu apaixonado coração só havia um medo: que subitamente acontecesse uma pane no computador, interrompendo o contato entre ele e a amada. Por precaução, possuía três máquinas, sempre renovadas pra evitar essa desagradável surpresa. E nesse vai e vem de namoro digital, um ano já havia transcorrido. Ela recusara às tentativas de se encontrarem pessoalmente, por mais que Joaquim insistisse. E nessa noite especial, quando a relação fazia aniversário, os dois, em uma espécie de lua de mel, num delírio virtual, passaram a manhã numa ilha do Caribe, almoçaram em Paris, jantaram no Taj Mahal, dormiram num hotel de luxo em Shangri-Lá. Depois, exaustos, ficaram brigando de mentirinha para ver quem primeiro desligava o computador. Cada um tomou um remédio pra dormir e mergulharam em sua mútua e incomensurável solidão. Enquanto isso, um casal de primitivos antropoides namoravam ao vivo num terraço de um sobradinho branco de janelinhas azuis. Ao fundo, armada entre vasos de jasmins, uma branca rede de casal os convidava, cúmplice, para gozar de todas as carnais delícias."



quarta-feira, 13 de julho de 2011

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Airton Monte - Vagabundos Pensares - 8 Julho 2011

Airton Monte - Vagabundos Pensares - 8 Julho 2011

Hoje é domingo, dia de feriado universal. Vontade não tenho nenhuma de trabalhar, mas gozar a folga tradicional em toda sua plenitude. Passar o dia de pernas pro ar, sem fazer absolutamente nada como a maioria das pessoas. Vejo os meus vizinhos tirando seus carros da garagem com um ar tão feliz estampado nos rostos que chega a me dar uma discreta inveja desses alegres felizardos. Meus filhos já se mandaram, manhã cedinho, ansiosos para começar o mais breve possível a sua festança dominical. E, em verdade, estão cobertos de razão. Com uma generosidade que não lhes é peculiar, até chegaram a me fazer um discreto e pouco insistente convite para acompanhá-los seja lá para onde forem. Naturalmente recusei a filial oferta de deslocar-me rumo à longínqua Praia do Futuro, porque só em pensar nos terríveis engarrafamentos que certamente haveríamos de enfrentar, preferi restar no confortável sossego de casa, acompanhado dos meus discos, livros e a indispensável televisão a cabo.

Além do mais, por serem as suas ideias de diversão bastante diferentes das minhas, poderia atrapalhar, como um trambolho paternal, o divertimento de meus amados desdobramentos celulares. Não é que eu pense que lugar de velho é em casa ou junto com seus iguais em torno de uma mesa dos botecos preferidos conversando sobre nossos semelhantes interesses. Também não posso me arriscar a deixar a residência sozinha, provisoriamente desabitada, por medo de que, ao regressar, seja vítima da desagradável surpresa de ver o meu suburbano tugúrio invadido e saqueado pelos solertes amigos do alheio que pululam livremente em todos os rincões da cidade. Principalmente agora, nesse momento crítico, em que os policiais ameaçam entrar em greve, deixando-nos mais desprotegidos do que já o somos, mesmo quando os homens da lei estão trabalhando a todo vapor. Certo que tenho, soltos no quintal, os meus diligentes sentinelas caninos, mas sabe-se lá de que artimanhas são capazes os ladrões profissionais.

Tirante esses pequenos problemas concernentes ao quesito segurança, é-me impossível fugir, mesmo aos domingos, da obrigatória labuta de pegar papel e caneta e escrever, por cima de pau e pedra, a compulsória croniqueta do dia antes da estreia do escrete canarinho na insossa Copa América. Tem nada, não. No próximo e bem vindo mês de agosto, é chegado o tempo de tirar as minhas merecidas férias do jornal e meu exaurido bestunto finalmente entrará no ansiado descanso anual. Enquanto isso não acontece, tenho de continuar lavorando, futucando cotidianamente o juízo em busca de assunto para traduzir em palavras feito um padeiro preparando o pão do espírito. Desculpem-me, se acaso o puderem, meus caríssimos, se estou sendo um tanto quanto repetitivo ao falar dos domingos nestas mal traçadas. Porém, cada um escreve do jeito que pode e não como desejaria. Que bom seria, caso houvesse em mim a capacidade de escrevinhar uma obra prima a cada dia. Entanto, estou muito aquém de tal magnífica condição de ser um escriba genial.

Uma de minhas raras qualidades é reconhecer as minhas literárias limitações neste mister que escolhi como ofício ou, quem sabe, haja sido escolhido por ele por razões que me são ignoradas. Deitado a meus pés, meu cachorro me olha, quando em vez, cheio de um carinho e afetividade quase humanos. Alguns podem não acreditar, mas os animais que a gente cria mostram-se capazes de nos transmitir os sentimentos que lhes povoam a alma, se é que os animais possuem alma igual a nós. Pelo menos eu creio que sim e deve haver, disso nem cogito em duvidar, um Deus dos cachorros, e que talvez seja o mesmo em que acreditamos. Penso que todos os animais, sem exceção, vão direto para o céu, porque o inferno não foi criado por eles nem para eles. Estarei eu a divagar, perdido entre tolos e ingênuos pensares? E se realmente estiver, que mal me pode causar tais distraídas divagações, essas elocubrações sem qualquer utilidade prática. Tudo que se pensa tem alguma serventia. Preenche o vazio e evita o tédio e me faz praticar o saudável exercício de rir de mim mesmo.




Airton Monte - Amor Próprio - 7 Julho 2011

Airton Monte - Amor Próprio - 7 Julho 2011

A natureza hoje resolveu ser generosa feito mãe de filho único. O sol, na plenitude de seu magnífico brilhar, paira, reluzente e ofuscante, no cimo do céu azul de Fortaleza, banhando a cidade de intensa claridade, transparências, translucências e eu agradeço alegremente penhorado. Luz é tão bom para os meus olhos míopes, tornando o mundo mais claro, de uma limpidez sem sombras. De obscuridade já basta o claro-escuro em que vivemos mergulhados nesta Fortaleza eivada de contrastes, de vestes puídas, esmulambadas, roída continuamente pelos buracos, buracões e buraquinhos oriundos de obras que parecem intermináveis. O simples caminhar pelas calçadas, ao invés de um mero passeio, tornou-se ultimamente uma operação de risco. A qualquer momento, o indigitado transeunte, seja de noite ou de dia, arrisca-se a cair dentro de uma cratera ou dar uma topada e estatelar-se no chão, causando graves danos ao indefeso esqueleto, principalmente os de idade mais avançada, cujos ossos já não possuem a pétrea condição de antigamente, pois a osteoporose desconhece a piedade.

Por estes dias, o amigo Newton Freitas, meu contemporâneo das lides escolares do glorioso Colégio Cearense, teve a doce gentileza de enviar-me uma copiosa carga de cervejinhas desprovidas de álcool, com a qual certamente molharei a goela no próximo final de semana, saciando a minha boêmia sede, muito embora esteja de há muito sequioso de ingerir uma satisfatória porção do pão líquido daqueles de verdade, com uma boa dosagem do desejado álcool etílico, porém terminantemente proibido, para anestesiar só um tiquinho a dura realidade. Todavia, o que hei de fazer senão obedecer ao velho ditado de que quem não tem cão caça com gato. E assim, vamos levando o bonde rigorosamente em cima dos trilhos, conforme manda o hipocrático figurino e dançando de acordo com o que a banda toca. Nunca fui de respeitar ardorosamente regras e limites que me são impostos, mas, por vezes, não tenho saída senão obedecer aos médicos como um menino obediente e muito do bem educado, do contrário posso ir acabar no beleléu do andar de cima e, por enquanto, ainda me apraz viver no térreo, sem nenhuma pressa de pegar o elevador.

Para matar o tempo antes que ele me mate, leio, com uma atenção de coruja, um texto de Bernardo Soares, um dos vários heterônimos de Fernando Pessoa:”A alma humana é um abrigo escuro e viscoso, um poço que não se usa na superfície do mundo. Ninguém se amaria a si mesmo se deveras se conhecesse, e assim, não havendo vaidade, que é o sangue da vida espiritual, morreríamos na alma de anemia”. Sábias palavras que me levam a pensar o quanto de verdade existe nelas, pronta para ser utilizada por qualquer um de nós, mesmo por aqueles que preferem deixar os miolos se afogarem na preguiça. Sim, muitos há que se preocupam em demasia em exercitar somente o deletério invólucro do corpo e esquecem que os neurônios também necessitam de exercício. Afinal, de que nos adianta exibir a sólida musculatura de um Hércules, se o cérebro vai se atrofiando pouco a pouco? Havemos ou não havemos de fazermos jus ao pomposo título de bípedes pensantes? Bom não olvidar o fato de que nossa cabeça não foi feita apenas com a simplista finalidade de separar as orelhas.

Apesar de reconhecer que não sou um profundo conhecedor de mim mesmo, por incrível que pareça, eu me gosto, eu me amo, eu não consigo viver sem mim. Em alguns abismos de minha alma, os mais rasos e menos perigosos certamente, já me atrevi a mergulhar sem a proteção de um escafandro em ousadas experiências. Evidentemente, fiz algumas descobertas. De umas gostei, de outras não, porém encarei a aventura com a naturalidade que me foi possível. Chegar a regiões mais abissais do meu inconsciente ainda não tentei por medo de ensandecer de vez e perder definitivamente o narcísico amor a mim que ora cultivo com cuidados de um jardineiro profissional. Talvez por tomar essas precauções de mergulhador amadorístico, minha alma inda não padeça de uma anemia anímica e eu continue me amando tanto quanto me basta para prosseguir na difícil tarefa de amar os meus imperfeitos semelhantes. Se eu não me amasse do jeito que me amo, com todos os meus defeitos e qualidades, ser-me-ia de tal modo impossível amar os outros e findaria por me tornar um amaldiçoado refém da solidão para todo o sempre.




Airton Monte - Pedido de socorro - 6 Julho 2011

Fatos acontecidos no cotidiano de uma casa sem mulher!


Airton Monte - Pedido de socorro - 6 Julho 2011


Manhã de sábado que se anuncia barulhentamente e não há nada que eu possa fazer a não ser tentar ignorar bravamente os tantos ruídos que me atordoam, vindos da pequena rua onde moro agora. Quando acordei, tive uma saudosa surpresa. Bem, surpresa é mais um modo de falar, pois já era sabedor de sua partida anunciada mal a semana botou as unhas de fora e me mostrou os dentes num sorriso maldoso e até certo ponto sarcástico. Mês de férias iniciando e a bem amada decidiu ir refugiar-se dos aperreios cotidianos lá pras bandas do Iguape ao lado dos irmãos e sobrinhos. Claro que não me foi de todo aprazível saber que a minha insubstituível Rainha do Lar vai passar uns longos e intermináveis oito dias distante de minha marital companhia. Entanto, levando em conta as circunstâncias, sei que ela necessitava quase urgentemente de um mais que merecido descanso das tediosas tarefas e responsabilidades domésticas, posto que ninguém é de ferro.

Por sofrer de uma incurável ojeriza a despedidas e adeuses, preferi deixar que ela se fosse sem que a visse ir-se. Foi melhor assim, menos dolorido, menos triste, menos sofrido pelo menos para mim. Nem sequer lhe escrevi o costumeiro e tosco bilhetinho cheio de prosaicas palavras de afeto desejando-lhe uma boa viagem sem sustos e que ela chegue ao seu praiano destino em completa segurança, livre e protegida dos perigos emboscados na estrada por todos os santos de sua devotada devoção. Por aqui vou ficando eu, preso a esta cidade e a seu pandemônio, sentindo-me feito um desgraçado prisioneiro de campo de concentração, segurando a pesada barra de tomar de conta da casa, dos filhos e dos dois cachorros. Haverei, forçosamente, de assumir o desagradável e cansativo posto de vigia, de sentinela do nosso suburbano tugúrio, até que ela retorne aos meus braços mais bela e bronzeada do que partiu. Coisas da vida, que é feita de idas e vindas, de ausências e de presenças dos seres que amamos.

Confesso, com sincera humildade, colocar sobre os meus ombros todo o imenso peso dos compromissos e responsabilidades habitualmente carregados pela bem amada, muito embora, antes de ir, ela tenha deixado a maior parte deles resolvida ou devidamente encaminhada e eu possa contar com o providencial adjutório de nossa um tanto quanto pragmática primogênita. Porém, nunca se está livre dos pequenos ou grandes problemas que podem surgir no decorrer do dia a dia. Por via das dúvidas, talvez não muito segura de minha competência para resolver a contento os possíveis pepinos que surjam enquanto distante estiver, a bem amada deixou a minha disposição um caderninho de salvadoras instruções para tais eventualidades, uma espécie de manual de sobrevivência destinado a me socorrer caso alguma coisa aconteça fora da ordem rotineira. Me conhecendo demasiado, após tanto tempo de íntima convivência, a mui amada achou por bem tomar as suas cuidadosas precauções.

Todavia, como hei de fazer para diminuir a tremenda falta que ela me faz, quer seja nos prazerosos jogos de cama, quer seja na companhia do dia a dia, compartilhando as alegrias e aflições. Afinal, estamos juntos desde que tínhamos quinze aninhos de idade, quando, intimorato mancebo, a tomei de um incômodo namorado durante a sua festinha de debutante, conquistando-a com um poema de amor acompanhado pela canção Minha Namorada, do Carlos Lyra e Vinícius e que se tornou a música de nossas vidas desde então e desde sempre. Contudo, vale a pena ressaltar que sou um verdadeiro e incontestável desastre na prática mais simples do cotidiano, uma catástrofe ambulante. Não sei trocar o botijão de gás, substituir uma lâmpada queimada, dirigir o sambado carro da família, arrumar uma torneira quebrada, ir a bancos, preencher um cheque, usar caixa eletrônico, pendurar um quadro na parede sem danificar o reboco. Por isso, bem amada, suplico que não estenda sua ausência mais que o prazo combinado. E volte logo, não demore muito, não demore nada, seja camarada e retorne rápido ao aconchego dos braços deste escriba desesperado.

Airton Monte - O Elixir da Juventude - 5 Julho 2011


Existem poucas coisas nesse mundo, onde teimo e insisto em continuar vivendo, apesar dos pesares, dos dissabores que costumam me afligir em certas ocasiões, capazes de me provocar espanto digno desse nome. Claro que ainda não cheguei ao bovino estado de habituar-me com as perversidades, as barbaridades cometidas a todo instante por algumas criaturas pertencentes a nossa espécie de macacos, digamos assim, pensantes. Mesmo em meio à barbárie primitiva em que somos obrigados a levar nossa vidinha, não fui capaz de perder a minha perene capacidade de indignar-me quando me defronto com os mais inadmissíveis e inimagináveis frutos oriundos de nossa selvageria que ora e sempre acontecem cotidianamente da Conchichina ao Chuí. O ser humano não passa, é minha óbvia conclusão, de um perfeito animal selvagem, embrutecido que o ralo verniz da cultura e da civilização em tantos milhares de anos mostrou-se totalmente incapaz de esconder, ocultar, velar. A fera aprisionada dentro de nós pode libertar-se quando menos se espera.

Alguns podem até mantê-la sob controle aparentemente, mas a qualquer momento também podem sair por aí expondo suas garras e seus caninos, tomados de uma ferocidade incoercível, impulsionados pelos motivos mais tolos e mais torpes. Para mim, não há somente mocinhos e vilões entre nós, pois cheguei a triste conclusão de que todos somos cúmplices neste filme que protagonizamos na realidade do nosso belo quadro social. Entanto, venho me dando conta, ultimamente, de um fenômeno que realmente me deixa pra lá de estupefato e incapaz de explicá-lo sob a luz de uma teoria qualquer que a mim me satisfaça. Parece que todos os meus perclaros amigos conseguiram, não sei como nem onde, haver descoberto o mágico elixir da eterna juventude. Como nenhum deles tornou-se um vampiro, constato, consternado, que somente eu envelheço. Somente a mim o tempo acomete e aflige com as costumeiras mudanças anuais de idade. Somente eu faço aniversário a cada trezentos e sessenta e cinco dias que se passam no implacável caminhar dos calendários.

Não se trata de uma despeitada vontade minha de desejar cometer indesculpáveis injustiças contra gente de meu mais fraternal afeto, mas o César Montenegro não sai dos cinquenta e quatro há pelo menos uma década. O poeta Carlos Augusto Viana estacionou nos cinquenta e um e não abre mão de tão satisfatória e confortável faixa etária. O livreiro Sérgio Braga já comemorou os seus cinquenta e dois verões pelo menos uma dezena de vezes, e o Erle Rodrigues nem é bom falar. João Soares Neto faz absoluta questão de manter uma canina fidelidade às sessenta e seis primaveras, que jura comprovar em cartório e com firma reconhecida. José Teles, poeta e anestesista, botou o tempo pra dormir na imóvel estação dos sessenta e quatro. Quer dizer, todos descobriram um processo de envelhecer lentamente como se pertencessem à confraria dos nascidos em anos bissextos. Para eles, o calendário tornou-se apenas uma dispensável figura de retórica, desprovido da importância que lhe dá o resto dos pobres mortais comuns que nem eu.

Qualquer modo, sejam bem-vindos, irmãos meus, à tal da “boa” idade e que o dobrar do Cabo da Boa Esperança lhes seja menos pesado do que o foi para mim. Só lhes peço um favor: jamais envelheçam da alma. Jamais se transformem em um bando de velhotes ranzinzas, de mal com a vida. Sejamos joviais, sobretudo. E que a cada encontro nosso se restaure em nossos encanecidos corações a boa e sadia molecagem de sempre. Entanto, na nossa idade, é preciso tomar certos cuidados. Principalmente com o mau humor, a perda da alegria, da esperança, porque é disso que os velhos morrem. Vento encanado é um perigo. Senão lá se vem boca torta, reumatismo, pneumonia. Nada de bancar o pai dos netos, numa apropriação indébita do pátrio poder. Não deixar que as mulheres comandem nosso existir, nos forçando a ir ao médico, dormir cedo, seguir dietas. Portanto, chegou a hora de sermos rebeldes transgressores da ditadura conjugal. Sejamos, enfim, aqueles de quem se diz que envelhecem com dignidade, pompa e circunstância, permanecendo donos e senhores do próprio destino.

sábado, 2 de julho de 2011

Ubutu

Bom texto, boa lição se tira dele!! Vale a pena Ler


"Uma pessoa é uma pessoa 
por causa das outras pessoas". 
(Ditado sul africano da tribo Ubuntu)
 A jornalista e filósofa Lia Diskin, no Festival Mundial da Paz em Floripa (2006), nos presenteou com um caso de uma tribo na África chamada Ubuntu. 
 Ela contou que um antropólogo estava estudando os usos e costumes da tribo e, quando terminou seu trabalho, teve que esperar pelo transporte que o levaria até o aeroporto de volta pra casa. 
 Sobrava muito tempo, mas ele não queria catequizar os membros da tribo então, propôs uma brincadeira pras crianças que achou ser inofensiva.
 Comprou uma porção de doces e guloseimas na cidade, botou tudo num cesto bem bonito com laço de fita e tudo e colocou debaixo de uma árvore. 
 Aí ele chamou as crianças e combinou que quando ele dissesse "já!", elas deveriam sair correndo até o cesto e a que chegasse primeiro ganharia todos os doces que estavam lá dentro.
 As crianças se posicionaram na linha demarcatória que ele desenhou no chão e esperaram pelo sinal combinado. Quando ele disse "Já!" instantaneamente todas as crianças se deram as mãos e saíram correndo em direção à árvore com o cesto.
 Chegando lá, começaram a distribuir os doces entre si e a comerem felizes.
 O antropólogo foi ao encontro delas e perguntou por que elas tinham ido todas juntas, se uma só poderia ficar com tudo que havia no cesto e, assim, ganhar muito mais doces. 
 Elas simplesmente responderam: "Ubuntu, tio. Como uma de nós poderia ficar feliz se todas as outras estivessem tristes?" 
 Ele ficou de cara. Meses e meses trabalhando nisso, estudando a tribo, e ainda não havia compreendido, de verdade, a essência daquele povo. Jamais teria proposto uma competição...
 Ubuntu significa: 
Sou quem sou, por quem somos todos nós.

Ubunto é uma antiga palavra africana que significa "Humanidade para todos". Também quer dizer:"Eu sou o que sou devido ao que todos nós somos"