quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Airton Monte - A Última passeata - 12 de Setembro 2011

Agosto passou e deixou atrás do seu rastro as suas marcas agourentas, fazendo jus ao seu mórbido apelido de “mês do desgosto”. Perdi, para sempre, um velho e grande amigo ceifado pela implacabilidade costumeira da Bela Dama sem Piedade. Era médico, sanitarista e chamava-se Francisco das Chagas Dias Monteiro, mais popularmente conhecido como “Chico Passeata”, desde os heroicos tempos do movimento estudantil durante a luta contra a Ditadura. Éramos amigos há pelo menos 30 anos e nos formamos juntos na mesma turma de medicina nos longínquos idos de 1976. Demorávamos a nos ver, mas quando nos encontrávamos pelas esquinas da vida era como se fôssemos vizinhos do mesmo prédio e acabássemos de nos ter visto ontem. Entre nós dois, o tempo e a distância, a frequência com que nos víamos não tinham a menor importância. Nossa amizade superava tudo.
Na noite em que recebi a infausta notícia de sua morte, eu estava sozinho em casa, tentando escrever algumas palavras vadias para a crônica do dia seguinte e, a princípio, fiquei tão chocado que não acreditei no que me diziam pelo telefone. Com a cabeça atarantada, sem conseguir colocar os pensamentos em ordem, liguei para outros amigos comuns que me confirmaram o triste acontecimento. Era como se a cada telefonema que eu dava, a notícia reboasse em eco pela cidade:” O Chico Passeata morreu! O Chico Passeata morreu!”. Depois, minha mulher chegou e repartimos os dois a grande dor que ora me consumia. Fazia tanto tempo que eu não sabia o que era chorar, que já nem me lembrava mais do gosto de uma lágrima sequer. Entanto, naquela noite sombria, eu chorei pelo Chico umas pequeninas lágrimas envergonhadas e tímidas. E logo vieram as saudades, as lembranças, essas companheiras inseparáveis das trágicas horas em que nossa alma se veste de luto.
 
Sim, bem sei que as perdas são decorrências inevitáveis do existir. Porém, à medida que envelhecemos, elas vão se tornando cada vez mais difíceis de suportar. A cada pessoa querida que morre, parece que a gente vai ficando cada vez mais sozinho, meio desamparado, meio órfão. Parece que vamos ficando cada vez mais frágeis do que quando ainda rebrilhava em nós o fulgor da juventude. Nestes dois, três últimos anos, tenho perdido alguns bons amigos que se mandaram para o andar de cima mais cedo do que eu. E a cada vez que frequento nossos bares preferidos, habituais pontos de encontro, percebo que as rodas estão diminuindo, as mesas cada vez mais vazias e as ausências começam a deixar de ser provisórias para tomarem um ar de eternidade. Custa-me dizer isso, mas os amigos estão começando a se ir de nossa presença um após outro, lentamente. De repente, estão aqui entre nós. De repente, já não estão, sumiram sem aviso prévio ou com partida anunciada. É assustador e triste.
 
Dessa vez, o escolhido pela fatídica roleta do destino foi o velho Chico Passeata de guerra. Desolado, procuro nas estantes confusas da biblioteca caseira um dos seus livros de poemas. E não acho. Sim, para quem não sabe, o Chico escrevia versos. Tinha alma de poeta e espírito de combatente. E uma risada larga, potente, verdadeira. Uma gargalhada somente possuída por aqueles que são apaixonados pela vida. O Chico ria por fora e por dentro, despido de qualquer pudor de demonstrar sua alegria por estar vivo. Era um homem sem rancores. Não guardava ódio nem daqueles que o torturaram na prisão Devia ter lá com ele os seus demônios íntimos feito todo mundo. Mas se os tinha, pelo que sei, convivia muito bem com todos eles. O Chico jamais deixou de sonhar e seu generoso coração era inimigo número um do talvez, do se, do quem sabe. Desculpa, meu velho amigo, por não haver participado da tua última passeata. Preferi te chorar sozinho, com tuas lembranças e tuas saudades. Até mais ver, Camarada!.


"O Chico jamais deixou de sonhar e seu generoso coração era inimigo número um do talvez, do se, do quem sabe"

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