terça-feira, 14 de outubro de 2014

Crônica - Porta retrato, café amargo e Aritmética - 14 de Outubro 2014

Porta retrato, café amargo e Aritmética

Fim de tarde, a luz natural do astro-rei já começa a dá sinais de morte, a claridade não é mais aquela de ainda a pouco, a escuridão agora vence a batalha contra os parcos reflexos da luz estelar. As horas são tristes,  horas de ocaso são tristes, penso em mortes, morte dos outros , morte minha. Depois de uma tarde inteira na solidão de minhas divagações, tomo a inevitável decisão de abandonar minha condição e eremita e resolvo vagabundear pela urbe. Nada de novo no cenário do meu arrabalde, as mesmas cenas cotidianas que se repetem rotineiramente. Um vendedor de algodões-doce religiosamente executa seu pregão  auxiliado por uma buzina ensurdecedora. Homens espadaúdos retornam de suas fainas em um comboio de bicicletas. O vendedor de bilhetes de loterias ainda tenta vender as últimas cartelas do dia, os últimos sonhos do dia no jogo da roleta dos bichos! E assim seguem as cenas urbanas da periferia local nesse momento de  quase noite.
Enquanto estou na esquina da igreja Matriz conversando com amigos, recebo um chamamento  daquela velha amiga de nossa família,uma pessoa que a muito não via.Mesmo distante dá pra entender que sua convocatória não tomará muito tempo meu. A senhora em questão solicita que eu lhe tire umas dúvidas a respeito de umas contas que ela tem com uns mascates, ela não é muito habilidosa em aritmética ( eu também não muito, mas um pouco mais afeito a números do que ela!)  e teme que os mascates queiram passá-la pra trás na prestação de contas! Ela puxa duas cadeiras e me convida pra sentar, começo a rabiscar algumas cifras após a explanação contábil da senhora. Os rabiscos são feitos numa caderneta modesta e de folhas amareladas pelo tempo!  Entre um balancete e outro, a senhora oferece café que prontamente aceito por mim. É um café forte e amargo, que para mim é de bom grado! Entre uma pausa e outra da contabilidade, por acaso miro um porta retratos onde está exposto a fotografia  da filha da senhora das contas, várias lembranças vieram ao pensamento. Lembranças boas, lembranças frustradas, desilusões. Aquele retrato foi suficiente para requentar memórias boas e ruins, por um instante me desconcertei diante aquela imagem e fiz um esforço tremendo para não exteriorizar nenhum sinal de abalo ante a mãe da moça.
A contabilidade já estava quase no fim, ainda bem, pois se não fosse assim minha condição de aritmético-contabilista teria sofrido um abalo suficiente para fechar o balancete. Um simples porta retratos causou toda esse desordenamento emocional.

Volto ao lar, tão eremitério  quanto eu o deixei a duas horas atrás. Estou de novo só, divagado, agora muito mais angustiado pelo café amargo, a aritmética e o moça do porta retratos. Principalmente pela foto dele!

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